“Qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho”. A definição atribuída à psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen, estudiosa dos temas assédio moral e sexual, introduziu a palestra conduzida pela procuradora do Trabalho Juliana Beraldo Mafra e levantou um alerta contra toda tentativa de banalização da violência no universo laboral. Na plateia, servidores efetivos e terceirizados da Universidade Federal em Mato Grosso do Sul (UFMS), campus de Três Lagoas.
Em uma perspectiva histórica do assunto, Juliana Mafra lembrou que a Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho, aprovada em junho de 2019, inovou ao prever que um único ato pode configurar assédio, razão pela qual, atualmente, não mais se exige a repetição da conduta para a caracterização do assédio no mundo laboral. A norma também incluiu a violência e o assédio com base no gênero.
Durante a sua apresentação, Mafra contextualizou outras normas aplicáveis à matéria e levou ao conhecimento dos participantes casos emblemáticos de atuação do Ministério Público do Trabalho, pela prática de assédio moral organizacional, em face de empresas como Carrefour, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.
“É importante que esse tipo de atividade parta dos gestores públicos. Nas universidades, deve ser classificada como capacitação obrigatória para servidores e alunos. Isso deve compor o compromisso de reparação histórica do Estado e da nossa sociedade em combater o racismo e o assédio, que afeta principalmente as mulheres no nosso país”, concluiu a procuradora do Trabalho.
Conforme pesquisa realizada pelo Instituto Patrícia Galvão, 76% das trabalhadoras entrevistadas relatam já ter sofrido um ou mais episódios de violência e assédio no trabalho. Além disso, 92% das pessoas consultadas concordam que as mulheres sofrem mais situações de constrangimento e assédio no ambiente laboral se comparadas aos homens. O levantamento foi feito em dezembro de 2020.
Justiça
Ao mediar a capacitação intitulada “Combate aos assédios moral e sexual e à discriminação no âmbito administrativo e acadêmico do ensino superior”, o professor de Geografia e diretor da Associação dos Docentes da UFMS, Thiago Araujo Santos, observou que a Justiça trabalhista recebe mensalmente, em média, 6,4 mil ações relacionadas a assédio moral no ambiente de trabalho. Esse cálculo, destacou, considera o volume de processos iniciados em 2022, quando foram ajuizadas 77,5 mil ações trabalhistas envolvendo essa temática, em todo o país.
“Isso equivale a uma ocorrência do tipo a cada 1 hora e 25 minutos”, analisou. Ainda segundo o docente, naquele ano, o Brasil contabilizou alta superior a 50% no número de registros de racismo e de homofobia, como mostra o Anuário de Segurança Pública. Ele acrescentou que 81% das pessoas entrevistadas veem racismo no Brasil, mas apenas 34% admitem preconceitos contra negros.
Gleice Carlos Nogueira Rodrigues, arquivista e coordenadora do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFMS e do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul (IFMS), seccional de Três Lagoas, disse que o tema escolhido surgiu a partir de relatos recebidos pelas entidades sindicais de casos que pudessem ser considerados assédio moral e discriminação racial, ocorridos no campus daquele município. “Diante disso, contamos com o apoio do Ministério Público do Trabalho para a atividade de capacitação visando à identificação e à prevenção desse tipo de prática entre estudantes, servidores e trabalhadores terceirizados no ambiente universitário”, enfatizou.
Já Zuleica da Silva Tiago Terena, mulher indígena de etnia Terena, discorreu sobre os desafios dos povos originários na preservação de seus territórios, costumes e culturas. “A discriminação começa porque foi negado o meu lar, foi negada a minha vivência. A gente foi jogada nas aldeias; a maioria era nômade, não vivia em um local fixo”, pontuou, emendando que há uma nítida tentativa de “embranquecer a população indígena, tentando um apagamento histórico de que não tem negro, não tem indígena”. No entanto, reconheceu que nos últimos anos as universidades foram ocupadas por um contingente relevante de acadêmicos indígenas, que se formou por meio do sistema de cotas.
Guilherme Tommaselli, servidor do IFMS e doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista, abordou o processo histórico de exclusão das pessoas pretas do ambiente acadêmico e como se desenvolve o racismo estrutural nesses locais, atingindo tanto quem estuda como quem trabalha nas universidades.
“No Brasil, é reproduzida a história do racismo, com as mulheres negras sendo empregadas domésticas, trabalhando na casa das pessoas brancas. Quando termina a escravidão, há a política interna de embranquecimento. O Brasil foi o último país a declarar o fim da escravidão, mas quem acabou com a escravidão foram os negros, com a formação dos quilombos. Os pretos ainda são os menos escolarizados e ocupam as profissões com os menores salários”, sublinhou.
A capacitação ocorrida no último dia 27 de novembro foi organizada pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFMS e do IFMS e pela Associação dos Docentes da UFMS, com apoio do MPT-MS.
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