Muita gente não teve a chance que o médico Marcelo Rezende teve. Ele venceu a covid-19 sem nenhuma sequela física. Diagnosticado no começo deste ano, Marcelo ficou internado quatro dias, passou por momentos delicados, e saiu do hospital transformado.
Uma mudança que assustou ele e as pessoas a sua volta. O médico se viu "acelerado", muito mais falante, vivendo tudo intensamente. A covid, segundo suas próprias palavras, "abriu sua caixa preta" e como isso aconteceu ele conta no Voz da Experiência.
"Meu nome é Marcelo Valeriano Rezende, tenho 56 anos, sou médico pediatra e psiquiatra. Contraí covid-19, acredito, no final do ano passado durante as festividades de Natal e Ano Novo. Sofri com a doença e saí um novo homem dela - renascido.
Trabalho em Ivinhema, mas minha família vive em Campo Grande. Estive no Natal para as festividades, mas logo tive que voltar a cidade, no dia 26 de dezembro, para cobrir o lugar de um colega que havia sido internado por outro motivo. Foi quando senti os primeiros sintomas.
Continuei trabalhando e piorei no decorrer da semana. Fui diagnosticado no dia 4 e internado no dia 6 de janeiro. A tomografia mostrou que estava com 50% do pulmão comprometido. Quando internei apareceu uma pneumonia secundária e o hemograma alterado.
De início me mantive calmo e até confiante por estar dentro de uma UTI. Porém, no terceiro dia de internação, o médico que estava me acompanhando de dia entrou no quarto e disse que meu hemograma tinha piorado, que minha infecção não estava respondendo ao antibiótico. Cheguei a usar oxigênio.
Naquele momento não demonstrei para o colega, mas na hora que ele saiu, chorei meia hora sem parar. Não chorava há mais de 10 anos. Ali foi decisivo pra minha mudança.
Nessa meia hora me imaginei chegando num saco preto no Rio de Janeiro, de onde sou. Minha mãe me recebendo, imaginei meus filhos me vendo sair nesse mesmo saco, porque morte por covid não dá pra ver corpo. Pensei também que poderia ser intubado, um indicativo grave de piora.
Para agravar meu estado emocional no período que fiquei internado, três pessoas morreram de covid. Ali a espiritualidade falou forte. Eu não pedi pra ser curado, nunca tive esse pretensão, mas pensei: "se nos planos de Deus tiver que eu vou sair dessa, eu vou mudar minha vida".
Eu fazia plantão em cima de plantão em cima de plantão, cheguei a levar paciente para Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
Mas a mudança não foi só nesse aspecto, essa foi a "menos importante", meu comportamento interpessoal mudou radicalmente. Eu era muito mais calado, geralmente quando eu saia com minha esposa, com que sou casado há 26 anos, só ela falava.
Muito falante, ela chegou a comentar que nós havíamos trocado de papéis tal qual o filme "Se Eu Fosse Você". Minha amiga fisioterapeuta que me atendeu depois, e que me conhecia, ponderou que eu sempre fui acelerado, mas que a covid "abriu a caixa preta"
Eu estou mais falante, mais comunicativo. Eu defendo mais minhas opiniões, estou bem menos resignado. Estou vivo.
Muitas vezes eu abria mão do meu desejo pensando que isso poderia ferir alguém e essa mudança foi de tal forma que as pessoas se espantaram comigo. Me tornei uma pessoa mais ativa nas minhas vontades.
Eu tinha um sonho de tocar saxofone, saí do hospital direto para comprar, e não comprei só um, comprei três. Comecei a tocar o saxe após uma doença respiratória, que é a covid.
Eu vejo a vida diferente. Vejo uma necessidade maior de aproveitar cada dia. Se você tem vontade de fazer algo, que faça. Minha vida era monótona, foi preciso eu desacelerar, e isso foi bom pra eu reexaminá-la.
Eu saí da direção do hospital, que me tomava muito tempo, saí da prefeitura também. Passei a atender como médico do trabalho em uma usina, com remuneração menor, só que com mais qualidade e tempo.
Eu ter me visto dentro de uma UTI em que eu não podia tomar banho em pé, observar minha fragilidade, essa minha sensação de impotência, foi muito transformadora.
No fundo , e isso é muito delicado de falar, pra mim o coronavírus foi uma espécie de "mal necessário", porque não deixou sequela, e no fundo deixou um saldo positivo.
Num contexto em que quase meio milhão de pessoas morreram por essa mesma doença, eu vejo minha recuperação como um renascimento. O paralelo que faço quando lembro do meu choro após receber a notícia minha piora, é com o choro de uma criança que acaba de nascer. Ali eu nasci para vida de novo." Via Campo Granden News
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